domingo, 9 de outubro de 2011


O mala nada na lama

O palíndromo é uma palavra ou frase que vai e volta. Uma fala sem ouvinte. A cobra que morde o rabo. Logo, pensamos em imagens como “quarto fechado”, “prisão”, “mato sem cachorro” etc. Quando Bertho Filho (que assina texto e direção da peça) muda o artigo do famoso palíndromo inventado (em verdade descoberto) por Millôr Fernandes, dá à frase um sentido sociológico e político. A mala deixa de ser um substantivo (o sentido denotativo) e passa a ser um adjetivo (o sentido conotativo da expressão). A peça começa no título, e seu desenvolvimento é uma tentativa de fugir ao fatalismo do palíndromo. Certamente a saída está no público. O público – a testemunha, portanto, que pode ou não testemunhar em audiência pública – é o rabo da cobra. Ou os dentes.
Bertho Filho (Cacilda) instala “outra” realidade com uma força, uma propriedade que, ironicamente, nos faz nos sentir em casa – mas na casa do autor da peça. De repente entram dois homens, trazendo nas bocas um diálogo arrastado sabe-se lá de onde, e eis que o público é levado a passar quase uma hora dentro de um “barraco” ou coisa que o valha. Ficamos dentro porque o trabalho de Bertho se impõe, ou nos põe para dentro, mais ou menos como o plano subjetivo no cinema. Não há como se imiscuir, numa possível emasculação, diante do que se convencionou chamar “princípio de realidade”, aquilo que tanto incomodou o autor de O mito de Sísifo.
“Dois na gangorra”, filme de Robert Wise – rigor na tradução brasileira para Two for the Seesaw, de 1962–, apresenta uma Shirley MacLaine atrelada a um Robert Mitchium em mesma situação, ainda que um seja bastante diferente do outro, em vários aspectos. O mesmo pode ser dito a respeito de Direito (Rangell Souza) e Dalua (Du Vado Jr.). O primeiro é um tipo assustador por sua crueldade e intolerância, embora seja, talvez, mais consciente, pela práxis, do que Dalua, sujeito cheio de teorias. Dalua é o trabalhador que acredita no sistema, e em falácias do tipo “quem trabalha Deus ajuda” etc. Aquilo que o empresariado, o dono do capital, enfiou na cabeça dos operários em construção de si mesmos, sem sair do lugar e sem tempo para amar – apenas o tempo necessário para fazer um filho, mais um, e consumir mais, portanto. Aliás, Dalua é aquele que ainda torce para o Bahia.
O texto de Bertho Filho é extremamente dinâmico e inteiramente submisso a uma dramaturgia que desenha as cenas com a presença ou ausência do personagem. Há uma evidente consciência da coreografia, por assim dizer, dos atores em cena, coisa que ficou lá na tragédia grega, infelizmente, e voltou com Racine e Corneille, apenas. O autor baiano não se trai, enfiando essa ou aquela frase de efeito, “digna de nota” mas sem qualquer função dramatúrgica. Não. O espaço é do tribalismo de Maffessoli e das relações de poder de Foucault. O realismo, que prescinde de todo e qualquer conhecimento filosófico, se expande tal qual o universo, no entanto, para dentro, mas também para dentro do público. Bertho quer se ausentar, o dramaturgo quer sair de cena, em benefício da veracidade do texto, da trama, do conflito.
E a peça inteira é um conflito, algo que tem faltado na dramaturgia baiana dos últimos anos. Bertho esbanja o que falta nos outros. Não há um só momento gratuito, na peça. E se o espetáculo, coeso, não chega a uma hora de duração, torna-se quase obrigatório concluir que as peças, de um modo geral, se excedem. Quase todas as peças poderiam durar menos. Cortando maneirismos e filosofias muito pessoais, uma peça teria a duração da peça de Bertho, que nos mostra o essencial.
Direito e Dalua chegam e começam a “construir” o resto do cenário, que é feito de andaimes e jornal, muito jornal no poscênio e no chão. O beliche que eles criam, com pedaço de madeira sobre o andaime, é uma grande idéia do autor – ou do cenógrafo. Assim, cria-se a impressão, fortíssima e mesmo incômoda, de que estamos diante de acrobatas – e de fato estamos. Todo movimento ou quase todo, se dá entre um andaime e outro, criando essa imponente situação de estorvo entre os personagens. Há provas a superar, o tempo inteiro. E com palavras, de modo que os acrobatas fazem tudo com uma espada na mão, como esgrimistas da palavra.
Se os protagonistas já não se entendem muito bem, a coisa realmente se agrava com a chegada em cena de uma terceira pessoa – e uma mulher. É essa mulher – ou jovem – que traz a arma que dará cabo à peça. E como a moça é de classe média alta, no mínimo, podemos concluir que é “de cima” que vem o poder de começar ou acabar o conflito. Ana Flor (Ana Paula Brasil) é usuária de drogas e deseja comprar qualquer coisa que a faça “viajar”. A moça está na “fissura”. Direito é do tipo que topa tudo. Não é um traficante e nem mesmo “avião”, mas um oportunista. De repente percebeu que poderia tirar vantagem daquela situação. Assim começa seu envolvimento com aquela que pensa ou deseja estar na lama “juntos”. O palíndromo começa a ser desfeito, com a divisão silábica. Escandindo as palavras, Dalua compõe seu destino de mala, e vai se afastando cada vez mais do “colega” cético, quase niilista. Ana Flor, ingenuamente, acha que faz parte de uma dupla dinâmica, ao lado de Direito.
Dentro de uma peça marcada pelo conflito, Bertho ainda nos oferece conflito maior ainda: o envolvimento de Dalua num crime idealizado por Direito. A ocasião faz o ladrão, pensamos. O resultado desse conflito hipertrofiado desfaz completamente o palíndromo e nos presenteia com uma grande epifania da última cena e das últimas palavras do texto.
É evidente, pelo que escrevi até agora, que gostei da peça. Mas há algo que me incomoda, e que é de grande importância para o julgamento do espetáculo: Bertho Filho repete Plínio Marcos. “Dois perdidos numa noite suja” tem não só a mesma ambientação e dramaturgia, como a mesma fonte: é baseado no conto em que se baseou a peça do autor baiano, o conto de Alberto Moravia, “Terror em Roma”. E há ainda o fato de Direito ser filho de uma prostituta, o que nos remete a “Querô”, do mesmo Plínio.

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